Brexit e intolerância no Reino Unido aceleram retorno de mineiros

Fiscalização contra imigrantes ilegais aumentou, assim como situações de xenofobia. ONG facilita retorno ao Brasil



Uma imigração com o sonho de melhorar as condições de vida e obter estabilidade financeira, mas que pode terminar com exploração trabalhista e desespero para retornar ao país de origem. Essa é a realidade de boa parte dos brasileiros que viajaram rumo ao Reino Unido e, meses depois, retornam por causa das dificuldades para se manter no exterior – principalmente depois do Brexit, como é chamada a saída da Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte da União Europeia. O polêmico processo foi definido em 2016 a partir de um referendo, mas até hoje não saiu do papel. A previsão, segundo o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, é que o passo rumo à saída deve ser dado em janeiro, o que pode complicar ainda mais a vida de quem está no país ilegalmente.
Longas jornadas de trabalho e pouca remuneração: essa era a realidade de um mineiro de 31 anos, morador de Bom Despacho, na Região Centro-Oeste. “Estava na condição de trabalhador ilegal. Meu visto era de turista. Antigamente, era mais tranquilo, porque não tinha tanto fiscalização. Você pesquisava na internet vagas de emprego, porque a demanda lá é muito grande, inclusive com plaquinhas na frente dos estabelecimentos. Hoje, o governo está mais focado no combate à imigração ilegal”, explica o homem, que não quis se identificar.

Foram seis meses em Londres. Lá, passou por diferentes empregos, ocupando cargos em restaurantes, na construção civil e numa terceirizada de uma gigante de vendas on-line. Neste último posto, o homem pagava 190 libras (cerca de R$ 1 mil) para trabalhar em uma van e realizar entregas em nome da empresa. “Se a van precisasse de alguma manutenção, eles superfaturavam o conserto, que chegava a até 400 libras”, reclama. “Você acaba trabalhando para pessoas que têm consciência da sua condição, então o empregador que se propõe a fazer isso vai tirar lucro de você de alguma forma. Entendo isso, porque você, como empregador, está correndo riscos. Quem está legal ganha 14 libras por hora (R$ 74) e a gente ganhava 8, no máximo 9 libras por hora”, comenta o mineiro.

Ele retornou do país europeu em outubro deste ano, a partir do apoio da Casa do Brasil, ONG referência em assistência a brasileiros no Reino Unido. Desde 2015, mais de 1 mil pessoas voltaram dessa forma. O mineiro conta que procurou a embaixada brasileira, mas o órgão estava fechado. Contudo, no site oficial da embaixada viu a indicação da ONG e, graças a ela, conseguiu retornar ao Brasil voluntariamente para evitar a deportação. “A gente marca uma entrevista com o governo britânico. Nela, você tem de ser o mais sincero possível. Tive de falar que trabalhava ilegalmente. Eles deixaram eu escolher a data do meu voo e o aeroporto de destino. Você é tratado como passageiro mesmo, sem constrangimento algum”, explica o brasileiro. Além disso, a Casa do Brasil arca com valores de hospedagem, alimentação e traslado, caso o cidadão precise.

Alerta aos imigrantes ilegais
A advogada Vitoria Nabas, que vive na capital britânica há quase duas décadas, é sócia do escritório de advocacia da Casa do Brasil. A organização não governamental presta assistência a imigrantes desde 2017. Ela explica que, desde 2016, quando 52% dos cidadãos britânicos disseram sim ao plebiscito do Brexit, aumentou o cerco dos serviços de imigração. As condições de trabalho também foram dificultadas. “Agora, é mais importante do que nunca divulgar àqueles que pretendem vir ao Reino Unido como turistas e tentar ficar, mesmo ilegalmente, em busca de uma vida melhor e ganhar dinheiro, que não devem fazê-lo, porque os empregos diminuíram e, com o Brexit, a tolerância à imigração também está diminuindo sensivelmente. Cidadãos europeus começaram a chegar à Inglaterra ocupando vagas de subempregos antes buscadas por brasileiros”, explicou.

"Hoje, o governo está mais focado no combate à imigração ilegal"
Mineiro que vive em Londres em situação ilegal

Foi o que ocorreu com a autônoma de 41 anos que saiu de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, e foi para Londres em março de 2017. Depois de quase três anos, decidiu voltar de forma voluntária por meio do projeto. “Vim em busca de trabalho. Cheguei em um sábado e na segunda-feira já estava trabalhando. Fazia limpeza nas casas e atuava como motorista. Mas, decidi deixar o país. Ao longo do tempo, consegui enxergar que tudo não passava de uma ilusão. Você vem com tantas expectativas e, na verdade, você não passa de um escravo. Você vive o tempo todo fugindo de outros brasileiros com medo de te entregarem para a imigração”, lamentou a mulher. Foi por meio de amigas que ela conheceu o projeto Casa do Brasil. “Procurei o projeto e elas foram bem atenciosas. Não tive qualquer insegurança, tive certeza do que queria”, acrescentou. Ela desembarcará no Brasil ainda hoje.

Vida de incerteza e medo

A Casa do Brasil, organização não governamental que é referência em assistência a brasileiros que vivem em países no Reino Unido, tem se dedicado a combater um problema recorrente para quem entra ou tenta viajar ilegalmente: os coiotes. Essas pessoas, responsáveis por arranjar maneiras ilegais de entrar nos países, têm histórico de enganar e ameaçar os brasileiros. Qualquer cidadão brasileiro em situação irregular – morando com o visto de turista– pode buscar ajuda na casa. O programa é gratuito e auxilia até mesmo com passagens aéreas para o Brasil e auxílio até a data da viagem. “Ninguém é forçado a nada. Se a pessoa mudar de ideia, pode fazê-lo”, completou a advogada da ONG, Vitoria Nabas.

Mas para quem é preso pela imigração, o retorno não é tão tranquilo, como relata um mineiro de 30 anos, natural de Bom Despacho. Ele trabalhava em um restaurante internacional e foi detido pela fiscalização em Londres. “Me mandaram para um hotel e depois para o aeroporto”, recorda. Segundo o mineiro, quem é pego em trabalho ilegal não tem direito a escolher o aeroporto de destino e deixa a Europa com a roupa do corpo. “Ele só pode pegar os pertences pessoais se alguém levá-los pra ele no aeroporto”, comenta.

"Tinha planos de permanecer no mínimo mais 3 anos lá para conseguir os valores que calculei para realizar meus planos no Brasil"
Relato de mineiro que vivia ilegal no Reino Unido

Ele, que trabalhava no Brasil como encarregado de obras, embarcou para Londres em agosto do ano passado. Ele conta que com a crise no setor da construção civil, ele ficou desempregado e passou por dificuldades para sustentar a filha de 7 anos. Lá, ele ficou por um ano até ser deportado. “Trabalhei em um restaurante. Entrei de ajudante de cozinha e fui subindo de cargo até me tornar chefe. Eu ganhava 12 libras por hora trabalhada, sendo que trabalhava 11 horas por dia”, explicou. Com esse valor, a despesa mensal era paga e, ainda, sobravam 1,3 mil ou 1,5 mil libras por mês, que eram enviadas ao Brasil. Não opinião dele, a fiscalização aumentou muito após a entrada do novo primeiro-ministro, Boris Johnson.

“É muito burocrático se regularizar no país, é muito caro pra quem não tem descendência. A maioria que consegue tem descendência de outro país da Europa. Para conseguir documentação inglesa, somente se tiver ascendência comprovada, ser casado com inglês/inglesa, comprovar estada durante 15 anos no país e arcar com um custo muito alto”, explicou. Ele foi deportado porque estava no país com visto de turista, mas estava trabalhando. Ele conta que desde o início foi para lá com a intenção de trabalhar e conseguir juntar um dinheiro para voltar para o Brasil e adquirir a casa própria e abrir um negócio. “Fiquei extremamente frustrado. Tinha planos de permanecer no mínimo mais 3 anos lá para conseguir os valores que calculei para realizar meus planos no Brasil. A vida aqui está difícil com a falta de trabalho e tudo muito caro: moradia, água, luz, alimentação...”, contou ele.

Além de ser deportado, ele conta que foi roubado e alerta sobre aproveitadores no exterior. “Há uma grande quantidade de brasileiros com documentação – alguns compram na Itália – que se aproveitam, exploram e até roubam brasileiros que estão lá ilegais”, denunciou. Ele conta que foi roubado por uma landlord (pessoa que aluga um imóvel para terceiros), que não reembolsou o valor do depósito do aluguel do quarto. “Recomendo a qualquer um que queira migrar pra qualquer país que tome muito cuidado com oportunistas e aproveitadores”, disse. Agora, ele sonha em se regularizar e voltar para o país. O homem contou que está usando o dinheiro que juntou para investir em renda fixa e na bolsa de valores. “E estou correndo atrás de documentos para voltar para a Europa. Não quero migrar ilegalmente de novo.”

Vida interrompida pela violência

Ao embarcar pela primeira vez em um avião para seguir rumo a Londres, Jean Charles de Menezes tinha 24 anos e levava na mochila um projeto grandioso: trabalhar e juntar na capital da Inglaterra dinheiro que não imaginava ser capaz de ganhar no Brasil, para ajudar a família. Com o resultado de seu trabalho, ele voltou ao país e levou os primos para atuar também no exterior. Mas, três anos depois, o sonho foi interrompido de forma covarde e violenta.

O mineiro Jean Charles foi assassinado aos 27 anos por policiais britânicos com oito tiros disparados à queima-roupa, em um vagão do metrô londrino, em 22 de julho de 2005. O jovem foi confundido com o terrorista etíope Omar Hussei – naquela que ficou conhecida como uma das mais desastrosas operações policiais da história da polícia inglesa, até então celebrada como a mais eficiente do mundo. A família do brasileiro sempre questionou o tratamento judicial do caso, porque nenhum policial foi alvo de procedimentos penais individuais, já que o Ministério Público considerou que não havia provas suficientes para processá-los.


Fonte: Estado de Minas