Crimes digitais: presente ou futuro?
Os crimes digitais não existem apenas em séries fictícias, como Black Mirror, que traz futuros distópicos e perturbadores. Extorsões digitais, avaliações de usuários (curtidas e haters, por exemplo), invasão de dispositivos e outras práticas já existem no presente.
Black Mirror nos lembra que aquele espelho preto (as telas de celulares e computadores quando desligados) pode refletir (daí “espelho”) o que temos de pior. Nesse diapasão, alguns crimes não mais dependem da presença física do agente, bastando um sinal de internet e algum dispositivo eletrônico.
Todos os dias, a internet conecta uma quantidade absurda de pessoas. O mundo diminuiu (leia aqui). E quanto maior o número de usuários, maior também é o número de potenciais vítimas de “crimes virtuais”.
Aliás, a expressão “crimes virtuais” não é a melhor, considerando que “virtual” seria algo que não existe na realidade. Uma denominação mais adequada seria “crimes digitais”.
Atualmente, os crimes digitais mais comuns são aqueles que ferem a honra (calúnia, difamação e injúria). Outros crimes, como a ameaça, também se valem da internet como meio de execução.
Ademais, outra modalidade muito comum de crime digital é a prática de “golpes”, como a invasão de contas bancárias (“internet banking”), com posterior subtração de valores, assim como a realização de compras utilizando sites de terceiros, causando prejuízo para o site que a realiza a venda ou para aquele que tem os seus dados utilizados na compra.
Como regra, os crimes digitais envolvem bens jurídicos que já são tutelados pelo nosso ordenamento jurídico. Alguns exemplos são os crimes contra a honra, o racismo e a apologia a outros crimes.
Além disso, novas práticas começam a surgir, como o cyberbullying, a pirataria de software, a espionagem (sobretudo pela invasão de e-mails) e os crimes envolvendo o comércio eletrônico.
Uma peculiaridade dos crimes digitais é que a propagação pode ser rápida e sem limites estimáveis, como no caso de uma ofensa proferida na internet, que pode chegar a milhares ou milhões de pessoas em uma rede social.
Nesses crimes, a utilização da internet gera alguns questionamentos quanto à competência para o julgamento do processo. A jurisprudência brasileira se orienta no sentido de que a competência é do lugar onde foi praticado o delito.
Nessa linha, um crime contra a honra praticado na internet teria a sua consumação no momento da prática do delito – por se tratar de crime formal –, conforme decisão a seguir:
PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CALÚNIA, DIFAMAÇÃO E INJÚRIA MAJORADAS. ALEGAÇÃO DE INÉPCIA DA INICIAL. FALTA DE INDICAÇÃO DO LOCAL DOS FATOS. INCOMPETÊNCIA TERRITORIAL. PRECLUSÃO. EQUÍVOCO NA CAPITULAÇÃO JURÍDICA. NÃO OCORRÊNCIA. RÉU SE DEFENDE DOS FATOS. INVIABILIDADE DE INCURSÃO NO ACERVO PROBATÓRIO. NULIDADES. PRECLUSÃO PARA APRESENTAR RESPOSTA À ACUSAÇÃO. INOCORRÊNCIA. CERCEAMENTO DE DEFESA. NOMEAÇÃO DE DEFENSOR AD HOC SEM ANUÊNCIA DA PARTE. NÃO VERIFICAÇÃO. INTELIGÊNCIA DO ART. 44, DO CPC/1973. MATÉRIAS JÁ EXAMINADAS. REITERAÇÃO DE PEDIDO. RECURSO ORDINÁRIO DESPROVIDO. I – Os crimes contra a honra praticados pela internet são classificados como formais, ou seja, a consumação se dá no momento de sua prática, independente da ocorrência de resultado naturalístico, de forma que a competência deve se firmar de acordo com a regra do art. 70do CPP – “A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução”. II – A simples divulgação do conteúdo supostamente ofensivo na internet já é suficiente para delimitação da competência, sendo aquela do lugar em que as informações são alimentadas nas redes sociais, irrelevante o local do provedor. Precedentes. […] (STJ, Quinta Turma, RHC 77.692/BA, Relator Ministro Felix Fischer, julgado em 10/10/2017)
Novos problemas quanto aos crimes digitais
Ocorre que muitas situações ainda não são claras quanto aos crimes digitais. Cita-se, por exemplo, a prática do “Ransomware”, que consiste na utilização de um código malicioso que inviabiliza o acesso dos dados armazenados em determinado dispositivo, exigindo, posteriormente, o pagamento de um resgate para a devolução do acesso ao usuário. Essa prática se tornou muito conhecida em 2017, após um ataque a vários computados ao redor do mundo (leia aqui).
No Brasil, não havendo tipo penal específico para essa conduta, seria questionada a tipificação como crime de extorsão (art. 158 do Código Penal) e, se não for econômica a vantagem solicitada, poderia ocorrer a tipificação com base no art. 154-A do Código Penal (invasão de dispositivo informático alheio). De qualquer forma, muitos pontos deveriam ser avaliados no caso concreto, sobretudo para a tipificação como crime de extorsão, que exige violência ou grave ameaça. Seria grave ameaça afirmar que não restabelecerá o acesso ao dispositivo se não for feito o pagamento do “resgate”? Sobre o tema, recomendo a leitura do meu artigo “Extorsão com a ameaça de ‘continuar como está’?” (leia aqui).
Com as criptomoedas (bitcoin, por exemplo), a inteligência artificial, a internet das coisas e várias outras tecnologias emergindo, o Direito Penal está preparado?
Evinis TalonAdvogado Criminalista, Professor de cursos de pós-graduação e Mestre em Direito.
Advogado Criminalista, professor universitário, Mestre em Direito, Especialista em Direito Penal e Processual Penal, Constitucional, Filosofia e Sociologia. Pós-graduando em Processo Penal pela Universidade de Coimbra (Portugal). Pós-graduando em Direito Público pela PUC/MG. Ex-Defensor Público do Estado do Rio Grande do Sul (2012-2015). Membro da International Society of Public Law (ICONS), do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP), do Grupo Brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal e da International Bar Association (IBA), integrando o Criminal Law Committee e o Public Law Committee, da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDC) e da International Law Association (ILA).