Estado detém as duas cidades que mais foram origem deste tipo de crime e três entre os cinco principais destinos. O Sul de Minas faz parte deste cenário.
"A gente sai de longe em busca de uma melhoria para nossa família e acaba sendo enganado. Comigo eu não me preocupo, mas o que será das minhas crianças agora?". A indagação é de Renato Alves Brito, de 31 anos, um trabalhador resgatado em julho deste ano em Ilicínea, no Sul de Minas, e que ainda luta na Justiça para receber alguma indenização após um grave acidente que o deixou incapaz de trabalhar.
Ele e outros três colegas foram retirados de Porteirinha, na região Norte, e transportados por mais de 800 quilômetros para serem vítimas de trabalho análogo ao escravo por um grande fazendeiro na colheira de uma das muitas plantações de café que fazem do Estado o principal produtor da commodity no mundo.
Esse é o retrato de centenas de pessoas que são tiradas de suas cidades para serem vítimas de escravidão, longe de tudo, da família e, principalmente, da dignidade. Dados atualizados nesta semana pelo Ministério do Trabalho, no site Radar SIT - da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) - ilustram essa grave situação, já que Minas Gerais liderou o ranking tanto de origem como destino de vítimas do tráfico de pessoas para o trabalho escravo.
Segundo a última atualização, que apresentou os números nacionais de 2021, Minas foi a origem de 579 casos de trabalhadores traficados para atuar em condições degradantes. Para se ter ideia, o segundo colocado no ranking é o Maranhão, que foi a origem do tráfico em 249 dos casos, menos da metade dos registros em solo mineiro. Entretanto, ao mesmo tempo, o Estado também lidera como principal destino dos trabalhadores traficados em todo o país, com 61 destes registros.
Ainda conforme a SIT, de todos os casos de tráfico de pessoas identificados, 53% são interestaduais, sendo que os dois municípios que mais foram origem são mineiros: São Francisco, no Norte do Estado, e Pompéu, na região Central. Ao mesmo tempo Minas ainda tem três municípios entre os cinco principais destinos de exploração de trabalhadores, sendo o primeiro colocado Coromandel e o terceiro Tapira, ambos no Alto Paranaíba. O quarto maior destino foi Paracatu, na região Noroeste.
Recentemente, a reportagem de O TEMPO divulgou que Minas Gerais também lidera, há 10 anos, o ranking de resgatados por trabalho escravo no país.
Fazendeiro tentou ‘despachar’ trabalhadores após acidente
A fazenda onde aconteceu o acidente que vitimou Renato Alves Brito e outros três colegas é de propriedade de um engenheiro influente no município do Sul de Minas. No dia 13 de julho deste ano, a fiscalização do Ministério do Trabalho chegou a Ilicínea após receber a denúncia do grave acidente ocorrido três dias antes com um trator. Na cidade, encontraram os catadores de café já no centro do município, acompanhados de do irmão do proprietário da fazenda, que tentava os enviar de volta para Porteirinha.
Na propriedade, foi constatado que os quatro trabalhadores estavam vivendo em um alojamento sem água potável e sem camas para todos, que dormiam em colchões velhos e bastante finos. Também não existia armários para colocar os pertences, fornecimento de equipamentos de proteção individual, ou qualquer formalização de contrato de trabalho, sendo que a remuneração ficava retida e eles recebiam apenas pequenos “vales” como “adiantamento da produção”.
Brito conta que encontrou o “trabalho” por meio de indicação de conhecidos, mas, ao chegar no Sul de Minas, percebeu que não era exatamente o que havia sido "vendido". “A gente trabalhava e precisava mandar dinheiro para a família, tenho quatro crianças pequenas. Mas era muita enrolação, não via o dinheiro para mandar pra minha esposa comprar comida pros meus filhos. A gente ainda passava dificuldade dentro do próprio trabalho, pedia para comprar as coisas e não traziam. Teve dia que comemos feijão ou arroz puro, chegamos a comer farinha seca. Água a gente bebia de uma mina que desentupimos”, detalha o trabalhador resgatado.
Ele era quem conduzia o trator na hora do acidente e conta que a marcha quebrou, já que o veículo nunca passava por revisões, descendo uma ladeira descontrolado. “No dia do acidente, quando estava no hospital, o Toninho (irmão do proprietário) foi lá para pedir que eu mentisse aos fiscais, queria que falasse que peguei o trator sem pedir, sendo que foi instrução deles. Quebrei quatro costelas e a coluna, não consigo trabalhar mais e não recebi nada deles, sequer procuraram para saber como estou. Esses fazendeiros só querem o nosso suor, para eles enriquecerem enquanto a gente passa necessidade”, reclama.
Passado um mês do acidente, o trabalhador ainda aguarda uma decisão judicial para receber pelo trabalho que o deixou acamado, uma vez que o “patrão” se recusou a reconhecer o vínculo empregatício e não fez o pagamento dos valores que eram devidos. “Agradeço muito a Deus e ao Ministério do Trabalho. A fiscalização foi lá e tomou conta da situação, ou eu nem sei o que seria da gente se não fosse eles resgatando a gente”, completa Brito.
Carlindo Souza Rocha, de 37 anos, também estava entre os trabalhadores que foram traficados de Porteirinha para o Sul de Minas. Ele aproveitou para dar a dica a outros trabalhadores rurais como ele. “Vivemos momentos de pânico e terror lá. Hoje, o que digo para os colegas é: fique atento para não ser vítima de trabalho escravo e, se acontecer, não se omita. Denuncie!”, alerta. As denúncias de trabalho análogo à escravidão podem ser feitas pela internet, no site do SIT.
Para auditor, números de Minas são devido à grande fiscalização
Procurado pela reportagem de O TEMPO, o auditor-fiscal do trabalho e Chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho, Maurício Krepsky, defende que Minas Gerais costuma liderar as estatísticas deste tipo de ocorrência por se tratar do Estado com maior número de ações fiscais.
“O esforço de fiscalização é muito grande e, por isso, há mais problemas encontrados. Temos em Minas auditores com bastante experiência e que já participaram do grupo nacional, além de várias gerências em cidades pequenas. São fiscais com faro técnico apurado para identificar essa questão”, pondera.
Ainda segundo Krepsky, outro fator que influencia nestes números é que os trabalhadores mineiros são os que mais sabem os canais de denúncia ao Ministério. “Usam muito, isso faz com que fique mais fácil pra gente identificar o local e fiscalizar. Recebemos denúncias dos próprios trabalhadores, pelo site, muito bem feitas, com fotos e vídeos anexados, indícios consistentes e, com isso, conseguimos priorizar e fazer ações assertivas”, finaliza o auditor.
Fonte: O TEMPO