Foram seis meses usando Ritalina, conhecida como a “pílula da inteligência”. Era o fim da graduação e Bruno* precisava se concentrar e ter foco para fazer os trabalhos de conclusão de curso e carimbar a formatura. Seguiu os passos de uma amiga e passou a usar o remédio de forma indiscriminada e indevida. Mas, o estímulo se transformou em torpor e o professor, hoje com 31 anos, viu sua vida se arrastar para o fundo do poço, num quadro agudo de depressão. “A faculdade é muito difícil e queremos nos sair bem de qualquer maneira. O medicamento fazia efeito, pois não pensava em mais nada, só no que precisava fazer, ou seja, estudar. Não pensava nem sequer que devia comer. É como se estivesse morto naquilo ali. Ela tolhe a pulsão da sua vida”, conta.
Estudo da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, mostra que 3% a 6% da população mundial usa psicoestimulantes para trazer mais concentração nos estudos e aumentar o desempenho na escola, na faculdade ou em concursos. Esses medicamentos são indicados para melhorar a cognição de pacientes diagnosticados com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) – Ritalina, Concerta e Venvanse são os mais populares. Entre os adolescentes, até um terço deles toma a droga como propulsor cognitivo ou para uso recreativo. Profissionais da saúde alertam: sem indicação clínica, o uso abusivo pode ser nefasto.
O psiquiatra Renato Araújo destaca que o uso indevido desse tipo de medicamento ocorre em todas as faixas de idade. Na infância, os próprios pais são os responsáveis por dar o remédio aos filhos, na expectativa de um rendimento escolar satisfatório. Adolescentes e jovens usam para melhorar o desempenho na escola ou na faculdade e também em festas e baladas. Adultos apelam para a Ritalina para melhorar a performance em cursinhos e concursos. Para essas pessoas que não têm o TDAH, a expectativa é de que o remédio desempenhe o mesmo papel no corpo saudável, fazendo “bombar” a capacidade de estudar. Renato Araújo, diretor da Clínica Mangabeiras, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, e especialista em neuromodulação, afirma que a pílula da inteligência não produz efeitos nesses casos ou é, no mínimo, questionável. “Esses medicamentos usados em pessoas saudáveis melhoram a inteligência, a cognição do paciente, a ponto de irem melhor em estudo ou concurso? É como se fosse uma bomba muscular. Estudos modernos mostraram que não há eficácia comprovada de que melhoraram o desempenho em pessoas sem a doença. É mais uma sensação subjetiva”, afirma.
O médico explica que o TDAH é normalmente identificado na infância ou, tardiamente, em quem não teve o diagnóstico precoce ou é portador de uma forma leve da doença. O paciente apresenta dificuldades em três esferas em maior ou menor grau: hiperatividade (criança agitada, inquieta, não consegue ficar parada em lugar algum), impulsividade (por causa disso, pode até ser agressiva) e desatenção (a criança fica “no mundo da lua” e não consegue ter a atenção sustentada). De acordo com o psiquiatra, meninos costumam apresentar o subtipo hiperativo e meninas, o desatento. Além desse, há o subtipo combinado, com todas as características. “Há outros sinais, como dificuldade em aprendizado e na motricidade fina, associada à dislexia. A resposta em crianças e adultos que tratam o TDAH é muito boa à medicação. Quando bem indicada, pode trazer benefícios diversos”, diz. O remédio pode ser associado ainda ao tratamento de pacientes com quadro grave de depressão, para melhorar a energia.
"Você não consegue nem mais ler os textos. Aí, sai dali para ir ao psiquiatra e tomar antidepressivo. É um círculo muito perverso"
Bruno*, 31 anos, professor
Mas, mesmo em pessoas com diagnóstico positivo para a enfermidade, podem ocorrer efeitos colaterais: insônia, falta de apetite, perda de peso e irritabilidade. Algumas crianças ficam ainda mais agitadas e indivíduos com propensão psiquiátrica podem desenvolver quadros psicóticos, ressalta o médico. Quem usa sem necessidade pode, além desse quadro, criar dependência química. “Os psicoestimulantes têm baixo potencial de dependência, mas quando ingeridos de maneira abusiva e sem prescrição médica, em doses cada vez maiores, causam a necessidade de uso constante. Em doses altas, pode dar euforia e sensação de prazer. Pode ser usado como uma cocaína. Há pacientes, inclusive, que quebram a medicação para cheirá-la”, relata o psiquiatra.
MERCADO PARALELO
No consultório, ele diz que é comum receber pais à procura do medicamento por causa do baixo rendimento escolar dos filhos. “Na consulta, percebemos outros quadros. Às vezes, a ansiedade é dos próprios pais. No caso de concurseiros, muitos falam abertamente que querem o remédio para estudar”, diz. Há ainda quem simule sintomas da TDAH para conseguir a receita especial do remédio tarja preta (venda controlada) e quem compre diretamente com pacientes. O estudo de Harvard revela que 25% de adolescentes com o transtorno de hiperatividade e déficit de atenção vendem a medicação, fomentando, assim, um mercado paralelo e perigoso. A experiência do médico Renato Araújo não o deixa mentir: nos últimos anos, tem aumentado o uso indiscriminado de psicoestimulantes. “A competição tem ficado cada vez maior e precoce. Há um componente importante da nossa sociedade atualmente, de que tudo tem que dar resultado.”
O Ministério da Saúde e nem a Secretaria de Estado de Saúde têm a dimensão do consumo de metilfenidato, o princípio ativo que dá nome aos psicoestimulantes, uma vez que ele não faz parte da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) do Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com o ministério, alguns estados e municípios incluíram a substância na relação local e fazem a distribuição. “Sendo assim, a pasta publicou recomendações para que todos os gestores locais elaborem protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas para controlar, de forma mais efetiva e eficiente, o uso desse remédio, que pode desencadear efeitos colaterais”, informou, por meio de nota. Em Minas, não há distribuição pelo sistema público. (*) Nome fictício
Consumo alarmante
O Brasil desconhece o tamanho do problema relacionado ao mau uso de remédios com indicação para tratar transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não tem o dado consolidado com a evolução das vendas de metilfenidato, princípio ativo desses medicamentos. Por ser uma substância controlada, todas as vendas no varejo farmacêutico são informadas para a agência – ela só é comercializada mediante apresentação de receita médica. Mas, a Anvisa informa que isso não exclui a oferta do medicamento de forma irregular em lugares fora das drogarias autorizadas. “Porém, os usuários devem ter bastante cautela com esse tipo de produto, pois não há nenhuma garantia de sua origem e composição”, afirmou, por meio de nota.
Insônia, falta de apetite, perda de peso e irritabilidade. Algumas crianças ficam ainda mais agitadas e indivíduos com propensão psiquiátrica podem desenvolver quadros psicóticos.
Sem estatísticas oficiais, a percepção fica por conta de quem está nos consultórios atendendo quem toma irregularmente os medicamentos esperando melhorar o desempenho acadêmico. A conselheira e coordenadora da Comissão de Psicologia Escolar e Educacional do Conselho Regional de Psicologia, Stela Maris Bretas Souza, classifica como “alarmante” a quantidade de metilfenidato – o princípio ativo dos populares Ritalina, Concerta e Venvanse – consumida no Brasil. “Geralmente, é indicado para crianças com comportamento muito agitado ou desatentas para ver se, controlando a agitação e melhorando a atenção, consequentemente, melhora o desempenho escolar. O medicamento ajuda a impulsionar foco e atenção, fazendo o menino ficar mais centrado e, logo, com desempenho mais desejável”, diz Stela.
Mesmo diante de indicação clínica, a psicóloga questiona a prescrição: “Não há comprovação científica da hiperatividade enquanto doença”, afirma. Ela relata conhecer vários casos de pessoas que se preparam para fazer concurso público e que conseguem receita para a compra do remédio, na expectativa de se concentrar mais para render mais. “A que preço? Que preço estamos pagando com o uso indiscriminado da medicação?”, questiona.
É o preço que Bruno diz não querer mais pagar. Diante do psiquiatra, simulava sintomas próprios de TDAH para obter a receita. “O fato de o remédio dar o foco não significa ter atividade social normal. Pelo contrário. É altamente prejudicial. Quando ativamos o cérebro para falar de vários assuntos, o organizamos para pensar. A Ritalina diminui essa múltipla atenção. A pessoa fica boba, mata o desejo ligado a essa hiperatividade. Fica concentrada em determinado assunto e não pensa em mais nada”, conta.
Depois de usar o medicamento por longo período, o professor entrou em depressão, teve síndrome do pânico e ficou inseguro. O ápice veio quando um dia, num mês de julho, ele largou os livros na mesa e entrou no chafariz da universidade onde estudava, em Belo Horizonte. “Pensei que nada fazia sentido, queria me sentir vivo. Os guardas me levaram, torci a roupa e voltei para estudar”, lembra. Dali, ele foi encaminhado ao serviço de psicologia da universidade, onde encontrou apoio para reverter o quadro.
“Tinha dificuldade de estudar, mas era uma questão de foco, concentração e objetivo e não de doença. As pessoas veem falta de foco como transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Isso não é uma enfermidade. É disciplina que você põe em sua vida. Mas, para facilitar, muita gente quer um remédio. Estamos numa época de medicalização de tudo”, diz. “São pais que trabalham, não dão conta da educação dos filhos e dão Ritalina às crianças. Não conseguem ver por que o menino está sem foco, se está dormindo na hora certa, por exemplo. É uma indisciplina que compromete a educação”, avalia. Bruno conta que, em determinado momento, além da dependência, passa o suposto efeito da inteligência. “Você não consegue nem mais ler os textos. Aí, sai dali para ir ao psiquiatra e tomar antidepressivo. É um círculo muito perverso.”
RITALINA
O QUE É
O Ministério da Saúde e nem a Secretaria de Estado de Saúde têm a dimensão do consumo de metilfenidato, o princípio ativo que dá nome aos psicoestimulantes, uma vez que ele não faz parte da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) do Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com o ministério, alguns estados e municípios incluíram a substância na relação local e fazem a distribuição. “Sendo assim, a pasta publicou recomendações para que todos os gestores locais elaborem protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas para controlar, de forma mais efetiva e eficiente, o uso desse remédio, que pode desencadear efeitos colaterais”, informou, por meio de nota. Em Minas, não há distribuição pelo sistema público. (*) Nome fictício
Consumo alarmante
O Brasil desconhece o tamanho do problema relacionado ao mau uso de remédios com indicação para tratar transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não tem o dado consolidado com a evolução das vendas de metilfenidato, princípio ativo desses medicamentos. Por ser uma substância controlada, todas as vendas no varejo farmacêutico são informadas para a agência – ela só é comercializada mediante apresentação de receita médica. Mas, a Anvisa informa que isso não exclui a oferta do medicamento de forma irregular em lugares fora das drogarias autorizadas. “Porém, os usuários devem ter bastante cautela com esse tipo de produto, pois não há nenhuma garantia de sua origem e composição”, afirmou, por meio de nota.
Insônia, falta de apetite, perda de peso e irritabilidade. Algumas crianças ficam ainda mais agitadas e indivíduos com propensão psiquiátrica podem desenvolver quadros psicóticos.
Sem estatísticas oficiais, a percepção fica por conta de quem está nos consultórios atendendo quem toma irregularmente os medicamentos esperando melhorar o desempenho acadêmico. A conselheira e coordenadora da Comissão de Psicologia Escolar e Educacional do Conselho Regional de Psicologia, Stela Maris Bretas Souza, classifica como “alarmante” a quantidade de metilfenidato – o princípio ativo dos populares Ritalina, Concerta e Venvanse – consumida no Brasil. “Geralmente, é indicado para crianças com comportamento muito agitado ou desatentas para ver se, controlando a agitação e melhorando a atenção, consequentemente, melhora o desempenho escolar. O medicamento ajuda a impulsionar foco e atenção, fazendo o menino ficar mais centrado e, logo, com desempenho mais desejável”, diz Stela.
Mesmo diante de indicação clínica, a psicóloga questiona a prescrição: “Não há comprovação científica da hiperatividade enquanto doença”, afirma. Ela relata conhecer vários casos de pessoas que se preparam para fazer concurso público e que conseguem receita para a compra do remédio, na expectativa de se concentrar mais para render mais. “A que preço? Que preço estamos pagando com o uso indiscriminado da medicação?”, questiona.
É o preço que Bruno diz não querer mais pagar. Diante do psiquiatra, simulava sintomas próprios de TDAH para obter a receita. “O fato de o remédio dar o foco não significa ter atividade social normal. Pelo contrário. É altamente prejudicial. Quando ativamos o cérebro para falar de vários assuntos, o organizamos para pensar. A Ritalina diminui essa múltipla atenção. A pessoa fica boba, mata o desejo ligado a essa hiperatividade. Fica concentrada em determinado assunto e não pensa em mais nada”, conta.
Depois de usar o medicamento por longo período, o professor entrou em depressão, teve síndrome do pânico e ficou inseguro. O ápice veio quando um dia, num mês de julho, ele largou os livros na mesa e entrou no chafariz da universidade onde estudava, em Belo Horizonte. “Pensei que nada fazia sentido, queria me sentir vivo. Os guardas me levaram, torci a roupa e voltei para estudar”, lembra. Dali, ele foi encaminhado ao serviço de psicologia da universidade, onde encontrou apoio para reverter o quadro.
“Tinha dificuldade de estudar, mas era uma questão de foco, concentração e objetivo e não de doença. As pessoas veem falta de foco como transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Isso não é uma enfermidade. É disciplina que você põe em sua vida. Mas, para facilitar, muita gente quer um remédio. Estamos numa época de medicalização de tudo”, diz. “São pais que trabalham, não dão conta da educação dos filhos e dão Ritalina às crianças. Não conseguem ver por que o menino está sem foco, se está dormindo na hora certa, por exemplo. É uma indisciplina que compromete a educação”, avalia. Bruno conta que, em determinado momento, além da dependência, passa o suposto efeito da inteligência. “Você não consegue nem mais ler os textos. Aí, sai dali para ir ao psiquiatra e tomar antidepressivo. É um círculo muito perverso.”
RITALINA
O QUE É
Assim como concerta e venvanse, a ritalina é um psicoestimulante indicado para melhorar a cognição de pacientes diagnosticados com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Feitos à base de derivados da anfetamina, esses medicamentos atuam aumentando os níveis de dopamina em importantes regiões cerebrais. Ajusta foco e atenção para, nos casos de diagnóstico positivo para a doença, melhorar o desempenho escolar. Pode ser associado ainda ao tratamento de pacientes com quadro grave de depressão, para melhorar a energia.
USO IRREGULAR
USO IRREGULAR
Estudo da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, mostra que 3% a 6% da população usa psicoestimulantes para outro fim: trazer mais concentração nos estudos e aumentar o desempenho na escola, na faculdade ou em concursos. Entre adolescentes, essa proporção chega a 35%. Grande parte de quem não tem indicação clínica compra o medicamento de pacientes com TDAH, criando um mercado paralelo.
EFEITOS COLATERAIS
EFEITOS COLATERAIS
Insônia, falta de apetite, perda de peso e irritabilidade. Algumas crianças ficam ainda mais agitadas e indivíduos com propensão psiquiátrica podem desenvolver quadros psicóticos. Pessoas que usam sem necessidade podem, além de ter as reações próprias do medicamento, ficar dependente da droga.
Fonte: Estado de Minas
Fonte: Estado de Minas