Uso de drogas: crime, contravenção ou fato atípico? Qual o atual entendimento?





Na antiga Lei de drogas, o artigo que tratava do uso de substâncias ilícitas trazia o seguinte texto:


Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa.

[1]

Tal comportamento era sem nenhuma dúvida considerado como crime, tendo em vista a previsão da pena de detenção. Com o advento da Lei11.343/06, o artigo 28 que trata da figura do usuário de entorpecentes não trouxe possibilidades de reclusão ou detenção ao infrator:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.[2]

Deste modo criou-se uma dúvida quanto a possível descriminalização ou despenalização do ilícito. Em primeiro lugar, é fundamental consultar aLei de Introdução ao Código Penal, a qual em seu artigo trata de definir o que é crime e contravenção penal:

Art. 1º - Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas alternativas ou cumulativamente.[3]

Portanto ao analisar a situação jurídica do fato, conclui-se que o mesmo não se trata de crime ou contravenção penal, haja vista não mais prever qualquer hipótese de reclusão, detenção ou mesmo prisão simples, neste sentido Luis Flávio Gomes é categórico ao afirmar:

Se as penas cominadas para a posse de droga para consumo pessoal são exclusivamente alternativas, não há que se falar em “crime” ou em “contravenção penal”, consequentemente, o art. 28 contempla uma infração sui generis (uma terceira categoria, que não se confunde nem com o crime nem com a contravenção penal)[4]

Vale ressaltar que tais penas alternativas muito se assemelham às medidas sócio-educativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, em que possuem maior caráter pedagógico do que punitivo.

No entanto Renato Marcão rebate a corrente defendida por Luiz Flávio Gomes, dizendo que a Lei de Introdução ao Código Penal é de 1940, época em que não existiam as chamadas penas alternativas na parte geral doCódigo Penal, sendo introduzidas somente em 1984 com a reforma penal, sendo assim o Direito Penal da época era outro, com intenções e objetivos diversos.

Na visão de Vicente Greco Filho a nova Lei de Drogas não descriminalizou, muito menos despenalizou a conduta descrita no artigo 28 da lei11.343/06, dizendo que as penas são próprias e específicas, no entanto não deixam de possuírem características penais. Nesse sentido justifica-se:


Não é porque as penas não eram previstas na Lei de Introdução doCódigo Penal de 1941, e, portanto, não se enquadram na classificação prevista em seu artigo que lei posterior, de igual hierarquia, não possa criar penas criminais ali não previstas. Desde que a pena não seja infamente, cruel ou perpétua, pode ser criada por lei e ter compatibilidade constitucional, causando estranheza interpretação que sustente que a lei não possa atribuir à conduta criminosa penas que não sejam reclusão, a detenção, a prisão simples ou a multa, e que a natureza da infração, crime ou contravenção, seja ditada por lei ordinária (no caso decreto-lei com força de lei ordinária, como faz oCódigo Penal) e que a lei mais recente não possa alterar.[5]

O Supremo Tribunal Federal no dia 13 de fevereiro de 2007, ao apreciar o Recurso Extraordinário número 430105 do Rio de Janeiro se posicionou a favor de que não houve a descriminalização dos fatos descritos no artigo28 da Lei 11.343/06:


A turma, resolvendo questão de ordem no sentido de que o art. 28 da Lei 11.343/2006 (Nova Lei de Tóxicos) não implicou aolitio criminis do delito de posse de drogas para consumo pessoal, então previsto no art.16 da Lei 6.368/76, julgou prejudicado recurso extraordinário em que o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro alegava a incompetência dos juizados especiais para processar e julgar conduta capitulada no art. 16 da lei 6.368/76. Considerou-se que a conduta antes descrita neste artigo continua sendo crime sob a égide da lei nova, tendo ocorrido, isto sim, uma despenalização, cuja característica marcante seria a exclusão de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva da infração penal. Afastou-se, também, o entendimento de parte da doutrina de que o fato, agora, constituir-se-ia infração penal sui generis, pois esta posição acarretaria sérias conseqüências, tais como a impossibilidade de a conduta ser enquadrada como ato infracional, já que não seria crime nem contravenção penal, e a dificuldade na definição de seu regime jurídico. Ademais, rejeitou-se o argumento de que o art. do DL3.914/41 (Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei de Contravencoes Penais) seria óbice a que a nova lei criasse crime sem a imposição de pena de reclusão ou de detenção, uma vez que esse dispositivo apenas estabelece critério para a distinção entre crime e contravenção, o que não impediria que a lei ordinária superveniente adotasse outros requisitos gerais de diferenciação ou escolhesse para determinado delito pena diversa da privação ou restrição da liberdade. Aduziu-se, ainda, que, embora os termos da Nova Lei de Tóxicos não sejam inequívocos, não se poderia partir da premissa de mero equívoco na colocação das infrações relativas ao usuário em capítulo chamado ‘Dos Crimes e das Penas’. Por outro lado, salientou-se a previsão, como regra geral, do rito processual estabelecido pela Lei 9.099/95. Por fim, tendo em conta que o art. 30 da Lei 11.343/2006 fixou em 2 anos o prazo de prescrição da pretensão punitiva e que já transcorrera tempo superior a esse período, sem qualquer causa interruptiva da prescrição, reconheceu-se a extinção da punibilidade do fato e, em conseqüência, concluiu-se pela perda de objeto do recurso extraordinário. (BRASIL. STF, 1ª Turma, RE 430105 QO/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 13.2.2007. Informativo n. 456. Brasília, 12 a 23 de fevereiro de 2007).

Este tema também gerou a criação de um Enunciado no FONAJE (Fórum Nacional de Juizados Especiais) criminal, em que diz:

ENUNCIADO 94 – A Lei nº 11.343/2006 não descriminalizou a conduta de posse ilegal de drogas para uso próprio (XXI Encontro – Vitória/ES).[6]

Luiz Flávio Gomes conceitua descriminalizar, legalizar e despenalizar:


Descriminalizar significa retirar de algumas condutas o caráter de criminosas. O fato descrito na lei penal deixa de ser crime (deixa de ser infração penal). Há duas espécies de descriminalização: (a) a que retira o caráter de ilícito penal da conduta mas não a legaliza; (b) a que afasta o caráter criminoso do fato e lhe legaliza totalmente. Na legalização o fato é descriminalizado e deixa de ser ilícito, ou seja, passa a não ser objeto de qualquer tipo de sanção. Despenalizar é outra coisa: significa suavizar a resposta penal, evitando-se ou mitigando-se o uso da pena de prisão, mas mantendo-se intacto o caráter de “crime” da infração.[7]

A partir deste entendimento, conclui-se que não houve descriminalização na conduta apresentada no artigo 28 da Lei 11.343/2006, o que houve foi a exclusão de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva da infração penal. Cumpre salientar que apesar de não ter a previsão de pena privativa de liberdade, a sentença condenatória para o uso de drogas cumpre os mesmos requisitos de qualquer outra sentença penal condenatória, como reincidência e inscrição do agente no rol de culpados.

Vale destacar que, atualmente, no Supremo Tribunal Federal, tramita um recurso que poderá criar um precedente no sentido de legalizar o uso de entorpecentes no Brasil, trata-se do Recurso Extraordinário 635659 de origem do Estado de São Paulo que tem como Relator o Ministro Gilmar Mendes. Tal recurso foi impetrado pela Defensoria Pública daquele Estado, mas precisamente pelo Dr. Leandro de Castro Gomes, que inconformado com a decisão do Colégio Recursal do Juizado Especial Criminal de Diadema/SP na qual condenou seu cliente a dois meses de prestação de serviço à comunidade por guardar três gramas de Maconha num invólucro, resolveu recorrer a Suprema Corte.

O Recurso é baseado nos princípios da intimidade, privacidade e “falta de ofensividade pública”, uma vez que fumar maconha não traria lesão a terceiros, bem como seria uma questão privada em que o Estado não deveria intervir. O recorrente pede a absolvição por atipicidade da conduta com a declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06, dizendo que uma lei infraconstitucional não poderia violar princípios Constitucionais, destacando que não existe defesa da saúde pública, uma vez que o próprio artigo traz a frase “para consumo próprio” e que tal ato deveria ser considerada no máximo uma autolesão, a qual não é fato punível, assim como a tentativa de suicídio.

Protocolado no ano de 2011, o Recurso Extraordinário 635659 teve repercussão geral reconhecida e está em fase de julgamento, o objetivo dos Defensores é a legalização de todas as drogas tidas como ilícitas, mas até o momento, com o voto de três ministros, a legalização se restringe a maconha.

Ao justificar seu voto o Ministro Luiz Edson Fachin se posicionou pela declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da lei 11.343/06, que criminaliza o porte de drogas para uso próprio, porém restringiu seu voto à maconha, droga apreendida com o autor do Recurso Extraordinário. O Ministro ainda salientou que, em temas de natureza penal, o Tribunal deve agir com autocontenção, pois em suas palavras, a atuação fora dos limites circunstanciais do caso pode conduzir a intervenções judiciais desproporcionais.

O Ministro Luis Roberto Barroso, acompanhando o voto do Ministro Luiz Edson Fachin, também limitou seu voto à descriminalização da droga objeto do Recurso Extraordinário, porém propôs que o porte de até vinte e cinco gramas de maconha ou a plantação de até seis plantas fêmeas sejam parâmetros de referência para diferenciar consumo e tráfico. No caso, estes parâmetro valeria até que o Congresso Nacional regulamentasse a matéria.

Na sessão do dia 20 de agosto de 2015, o Ministro Relator Gilmar Ferreira Mendes apresentou seu voto no sentido de prover o Recurso Extraordinário e declarar a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. Em sua avaliação a criminalização estigmatiza o usuário e compromete medidas de prevenção e redução de danos, bem como gera uma punição desproporcional ao usuário, violando o direito a personalidade. No entanto, o Ministro votou pela manutenção das sanções previstas no dispositivo legal, conferindo-lhes natureza exclusivamente administrativa, afastando, portanto, os efeitos penais. Na sessão do dias 10 de setembro de 2015, o Ministro Gilmar Mendes ajustou seu voto original para declarar a inconstitucionalidade, com redução de texto, da parte do artigo 28 da lei de drogas que prevê a pena de prestação de serviços à comunidade, por se tratar de pena restritiva de direitos.

Aguardemos o desenrolar do julgamento.

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[1] BRASIL. Lei 6.368 de 21 de outubro de 1976. Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências. Disponível em:. Acesso em 20 out. 2015

[2] BRASIL. Lei nº 11.343/06, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Disponível em:. Acesso em 20 out. 2015.

[3] BRASIL. Decreto-Lei nº 3.914 de 09 de dezembro de 1941. Instituiu a Lei de Introdução ao Código Penal e Contravenções Penais Disponível em. Acesso em 30 set. 2015.

[4] GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice; CUNHA, Rogério Sanches da; OLIVEIRA, William Terra de, Nova Lei de Drogas Comentada, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2006, p.108/113.

[5] GRECO FILHO, Vicente; RASSI, João Daniel. Lei de drogas anotada: lei n. 11.343/2006. 2. Ed., rev. E atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

[6] BRASIL. Enunciado 94 do FONAJE CRIMINAL. XXI Encontro de Vitória/ES. Disponível em. Acesso em 20 out. 2015

[7] GOMES, Luiz Flávio. Nova lei de drogas: Revista Jus Navegandi, Teresina, ano 11, n. 1236, 19 nov.2006. Disponível em:. Acesso em: 16 nov. 2015.


Afonso MaiaPROAdvocacia e Assessoria Jurídica
Advogado atuante nas áreas de Direito Civil, Criminal, Família, Consumidor e Tributário; Formado em Direito pelo Centro Universitário São Camilo Espírito Santo, na Cidade de Cachoeiro de Itapemirim-ES; inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional de Itapemirim - sob o n. 25.941; Pós-Graduando pelo Centro de Ensino Renato Saraiva, Direito Penal ("Lato sensu"). Atua também como correspondente jurídico nas Comarcas de Marataízes, Itapemirim, Piúma, Anchieta e Presidente Kennedy/ES. Contato: afonsogmaia@gmail.com