Reconhecimento de paternidade socioafetiva ‘post mortem’. É possível?

Confira o que o Superior Tribunal de Justiça pensa a respeito!





Júlia foi mãe solteira aos 16 anos. Por 2 anos criou sozinha seu filho Henrique, fruto do conturbado relacionamento que teve na juventude. Aos 18 anos Júlia conhece Marcos, de 25 anos, que despontava como um comerciante de sucesso na cidade onde viviam. Eles namoraram e logo se casaram. O comércio de Marcos passou a ser o negócio da família, onde todos trabalhavam. Marcos sempre teve grande carinho por Henrique, ao ponto de tratá-lo como filho. Aliás, era assim que Marcos o apresentava aos amigos e à sociedade em geral: como seu filho. Ambos eram sempre vistos juntos, tanto em reuniões familiares, quanto em eventos escolares e festividades públicas. Apesar de tanto afeto, Marcos nunca adotou Henrique formalmente.

Da união entre Marcos e Júlia nasceu outro filho, Roberto, que nunca teve boa relação com Henrique.

Passados mais de 20 anos, Marcos, num trágico acidente automobilístico, veio a falecer, deixando diversos bens a inventariar. Roberto não admitia a ideia de dividir a herança do pai com Henrique, e acabou conseguindo convencer Júlia a concordar com a exclusão dele da sucessão.

Henrique ficou, assim, de fora do processo de divisão de bens do falecido, pelo qual era tido por filho.

Prezados leitores do Jusbrasil,

A situação hipotética narrada acima é muito comum. Traduz a dura realidade de filhos que não foram adotados formalmente por seus pais socioafetivos, quando estes ainda eram vivos.

Existe solução jurídica para casos assim?

A lei ampara os direitos desses filhos?

A resposta, felizmente, é SIM!

A lei reconhece a existência do parentesco socioafetivo. Prevê o art. 1.593, do Código Civil, que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”.

A expressão “outra origem” garante a possibilidade de reconhecimento de relações de parentesco derivadas de fontes diversas do sangue, como é o caso da socioafetividade descrita em nosso caso hipotético.

Na situação narrada, o que Henrique possui em face de Marcos é a posse de estado de filho, que a doutrina reputa presente quando verificados três requisitos básicos (não necessariamente concomitantes): tractatus, nomen e fama. O primeiro diz respeito aos personagens da relação de paternidade socioafetiva tratarem-se mutuamente como pai e filho. O segundo ocorre quando pai socioafetivo dá seu sobrenome ao filho, mesmo sem adotá-lo formalmente. O terceiro acontece quando a família e a sociedade em geral os reconhecem como pai e filho.

O tema foi objeto de debates na III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, culminando na redação do Enunciado nº 256, que defende que “a posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”.

Ótimo! A lei reconhece que, em nosso caso hipotético, Henrique possui parentesco civil com o falecido. Contudo, vale lembrar que Marcos não o adotou em vida, dificultando o exercício dos direitos sucessórios de Henrique.

Então o que Henrique pode fazer?

A resposta é simples: ajuizar ação declaratória visando o reconhecimento da relação de paternidade socioafetiva que possuía com o falecido, ou seja, deve buscar o reconhecimento da paternidade socioafetivapost mortem. A ação deverá ser proposta em face dos herdeiros do de cujus.

Para tanto, buscará provar que:

1. Marcos possuía clara e inequívoca vontade de ser reconhecido como seu pai socioafetivo; e

2. Ostentava posse de estado de filho perante Marcos;

O fundamento legal da ação está previsto no art. 42, § 6º, doECA, que prevê que “a adoção poderá ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vier a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença”.

Em que pese tal dispositivo albergar somente a hipótese de falecimento no curso do processo de adoção, o STJ o interpreta extensivamente, entendendo pela sua aplicabilidade em casos onde a vontade de adotar tenha sido ampla e inequivocamente demonstrada, mesmo à revelia da abertura de processo formal de adoção.

Expondo tal entendimento, o STJ já consignou, no julgamento do REsp 1.217.415/RS, de relatoria da Min. Nancy Andrighi, em 19/06/12, que “para as adoções post mortem, vigem, como comprovação da inequívoca vontade do de cujus em adotar, as mesmas regras que comprovam a filiação socioafetiva: o tratamento do menor como se filho fosse e o conhecimento público dessa condição”.

Mais recentemente, julgando o REsp 1.500.999/RJ, relatado pelo Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, em 12/04/2016, o STJ decidiu:


RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. PROCESSUAL CIVIL. ADOÇÃO PÓSTUMA. SOCIOAFETIVIDADE. ART. 1.593 DO CÓDIGO CIVIL. POSSIBILIDADE. ART. 42, § 6º, DO ECA. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. POSSIBILIDADE. MAGISTRADO COMO DESTINATÁRIO DAS PROVAS. CERCEAMENTO DE DEFESA. INEXISTÊNCIA. 1. A socioafetividade é contemplada pelo art. 1.593 do Código Civil, no sentido de que "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte da consanguinidade ou outra origem". 2. A comprovação da inequívoca vontade do de cujus em adotar, prevista no art.42, § 6º, do ECA, deve observar, segundo a jurisprudência desta Corte, as mesmas regras que comprovam a filiação socioafetiva, quais sejam: o tratamento do menor como se filho fosse e o conhecimento público dessa condição. 3. A paternidade socioafetiva realiza a própria dignidade da pessoa humana por permitir que um indivíduo tenha reconhecido seu histórico de vida e a condição social ostentada, valorizando, além dos aspectos formais, como a regular adoção, a verdade real dos fatos. 4. A posse de estado de filho, que consiste no desfrute público e contínuo da condição de filho legítimo, restou atestada pelas instâncias ordinárias. 5. Os princípios da livre admissibilidade da prova e do livre convencimento do juiz (art. 130 do CPC) permitem ao julgador determinar as provas que entender necessárias à instrução do processo, bem como indeferir aquelas que considerar inúteis ou protelatórias. 6. Recurso especial não provido.

Diante de todo o exposto, fica clara a possibilidade do reconhecimento de paternidade socioafetiva post mortem, cuja ação possui amparo na lei e na jurisprudência.

Para mais informações, recomendo a leitura do Informativo nº 581 do STJ!




Fernando Lucas Berti

Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (2012). Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2015). Pós-graduando em Advocacia Cível e Responsabilidade Civil e Contratos pela Verbo Jurídico (2016/17).